Cultura

Nada como um “joelhaço” para resolver a sua crise existencial – por Veríssimo

Tá mais do que na hora de reverter este jogo contra o desânimo. E nada melhor que começar o dia rindo com um dos antológicos personagens de Luís Fernando Veríssimo, o Analista de Bagé.

Com um método nada ortodoxo, ele reinventa a psicanálise e nos lembra pra deixar de lado tantas inquietações e apenas sermos nós mesmos.

Um dos maiores sucessos do autor nos anos 80, este grosseirão machista ainda nos diverte com suas respostas absurdas ditas num supetão.

E é bom Freud nem tentar explicar porque ele é simplesmente irresistível com suas histórias que valem uma sessão de terapia. Boa leitura!

Finitude

Existem muitas histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verdadeiras.
Seus métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva como
“freudiano barbaridade”. E parece que dão certo, pois sua clientela aumenta. Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.

Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o
analista de Bagé faz é lhe dar um joelhaço.

Em paciente homem, claro, pois em mulher, segundo ele, “só se bate pra descarrega energia”. Depois do joelhaço o paciente é levado, dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.

– Te abanca, índio velho, que ta incluído no preço.
– Ai – diz o paciente.
– Toma um mate?
– Nã-não… – geme o paciente.
– Respira fundo, tchê. Enche o bucho que passa.
O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:
– Agora, qual é o causo?
– É depressão, doutor.
O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
– To te ouvindo – diz.
– É uma coisa existencial, entende?

– Continua, no más.
– Começo a pensar, assim, na fìnitude humana em contraste com o infinito cósmico…
– Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
– E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente á
condição humana. E isso me angustia.
– Pos vamos dar um jeito nisso agorita – diz o analista de Bagé, com uma baforada.
– O senhor vai curar a minha angústia?
– Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.
– Mudar o mundo?
– Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.
– Mas… Isso é impossível!
– Ainda bem que tu reconhece, animal!
– Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
– Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice e da gorda.
– Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta…
– Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
– Me alimento.
– Tem casa com galpão?
– Bem… Apartamento.
– Não é veado? Não.
– Tá com os carnê em dia?
– Estou.
– Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito
– O Freud não me diria isso.
– O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
– Não.
– Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.
– Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta :
– É pior que joelhaço?

Luís Fernando Veríssimo, crônica “Infinitude”, do livro “Todas as Histórias do Analista de Bagé”. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2002

Foto: Alice Vergueiro/Abraji   By Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – Luis Fernando Verissimo, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=74938348

 

Revista Ecos da Paz

Viver em harmonia é possível quando abrimos o coração e a mente para empatia e o amor.

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