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A viagem interior de Cecília Meireles em 7 poemas

Cecília Meireles nasceu no comecinho do século 20, em 7 de novembro de 1901. Apesar da morte aos 63 anos levada pelo câncer, sua obra perdura através dos tempos, revelando a inquietação de uma mulher que vive uma eterna busca sobre a essência da vida.

Além de poeta, foi professora, jornalista e pintora. Estudiosos a consideram a primeira voz expressiva na literatura brasileira. E sua produção literária não se restringiu apenas aos versos.

Cecília também se aventurou pelo conto, crônica, literatura infantil e também escreveu sobre folclore.

Mesmo tendo participado da Semana de Arte Moderna de 1922, ela nunca pertenceu a  movimento literário algum, embora sua obra traga traços do simbolismo.

Além disso, Cecília Meireles foi a primeira mulher a ter um livro premiado pela Academia Brasileira de Letras com a obra “Viagem”.

A Revista Ecos da Paz destaca sete poemas dos livros “Viagem” e “Vaga Música” em que a autora parte para uma busca interior e investiga constantemente o seu fazer poético, temas que vão permear a sua obra.

Embarque e se deixe levar pelo lirismo de Cecília Meireles, boa leitura!

ANUNCIAÇÃO

Toca essa música de seda, frouxa e trêmula,
que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.

Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento

E o vento bate nas cordas, estremecem as velas opacas.,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.

Toca essa música de seda, entre areias e nuvens e espumas.

Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos;
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à-toa.

Cessará essa música de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.

E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.

CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

SOM

Alma divina,
Por onde me andas?
Noite sozinha,
lágrimas, tantas!

Que sopro imenso,
Alma divina,
Em esquecimento
Desmancha a vida!

Deixa-me ainda
Pensar que voltas,
Alma divina,
Coisa remota!

Tudo era tudo
Quando eras minhas
e eu era tua,
alma divina!

CANTAR

Cantar de beira de rio:

Água que bate na pedra,

Pedra que não dá resposta.

Noite que vem por acaso,

Trazendo-nos lábios negros

O sonho que se gosta.

Pensamento do caminho

Passando o rosto da flor

Que pode vir, mas não vem.

Passam luas—-muito longe,

Estrelas—muito impossíveis

Nuvens sem nada, também.

Cantar de beira de rio:

O mundo coube nos olhos,

Todo cheio, mas vazio.

A água subiu pelo campo,

Mas o campo era tão triste…

Ai!

MAR EM REDOR

Meus ouvidos estão como as conchas sonoras:
musica perdida no meu pensamento,
na espuma da vida, na areia das horas…

Esqueceste a sombra do vento
Por isso, ficaste e partiste,
e há finos deltas de felicidade
abrindo os braços num oceano triste.

Soltei meus anéis nos aléns da saudade.
Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira.
Almas de todos os afogados
chamam para diversos lados
esta singular companheira.

CANÇÃO EXCÊNTRICA

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre meu passo,
é distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
– saudosa do que não faço,
– do que faço, arrependida.

DESPEDIDA

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces ? – me perguntarão.
– Por não Ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras ? Tudo. Que desejas ? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação…
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !
Estandarte triste de uma estranha guerra…)
Quero solidão.

Cecília Meireles poemas do livro Antologia Poética de Cecília Maeireles.  Ed. Nova Fronteira, Rio de janeiro, 1982

Revista Ecos da Paz

Viver em harmonia é possível quando abrimos o coração e a mente para empatia e o amor.

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